20 de jul. de 2016

Eugénio de Andrade

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar. O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Victor correndo nos sulcos da sua melancolia. O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, procurando assim parecer-me cada vez mais com a terra obscura do meu próprio rosto. Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala poise aqui, por ser tão branca.

24 de jun. de 2016

Pablo Neruda

Saudade é amar um passado que ainda não passou. É recusar o presente que nos magoa. É não ver o futuro que nos convida...

19 de jun. de 2016

O Dia Deu em Chuvoso, Álvaro de Campos

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso.

28 de mai. de 2016

A solidão

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos. José Saramago.

1 de mai. de 2016

Cai a chuva abandonada

Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.
Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente
do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião
de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.
Vergílio Ferreira.

20 de abr. de 2016

Clarice Lispector

Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem que ser vivido até à última gota. Sem nenhum medo. Não mata.

2 de abr. de 2016

Bukowski


talvez você não acredite
mas há pessoas
que passam a vida
sem o menor
atrito ou
agonia
eles se vestem bem, comem
bem, dormem bem
estão satisfeitos com a vida
em família.
eles têm momentos de
melancolia
mas no geral
não são incomodados
e, frequentemente,
sentem-se
muito bem quando morrem
é uma morte fácil, geralmente,
dormem.
talvez você não acredite
porém essas pessoas existem.
mas eu não sou
uma delas
ah não, eu não sou
uma delas
eu nem chego perto
de ser
uma
delas
mas elas estão
e eu estou
cá!
Bukowski.

Rob Gonsalves


M.C Escher


Buda

Existem três classes de pessoas que são infelizes: a que não sabe e não pergunta, a que sabe e não ensina e a que ensina e não faz. 

1 de abr. de 2016

A falsa prisão

Em um mosteiro Zen, um monge novato estava agindo de forma rebelde às normas do local, causando um certo tumulto. O mestre, percebendo o desconforto da comunidade dos monges, resolveu chamar a atenção do monge rebelde determinando-lhe que ficasse num alojamento a parte para que refletisse sobre a sua conduta. Contrariado, mas obediente, o monge aceitou a ordem e foi levado ao tal alojamento.
Passaram-se algumas semanas e o monge ainda estava no mesmo aposento, onde lhe levavam diariamente comida e água que eram deixadas em uma abertura da porta. Todo esse tempo de enclausuramento fez com que chegasse à conclusão que havia de fato passado dos limites com aquela atitude de rebeldia. Estava realmente arrependido.
O tempo passava e já fazia alguns meses que o monge estava lá, quando começou a se inquietar e pensou, indignado: “Sei que abusei da minha liberdade, mas não acho que minha atitude tenha sido tão grave ao ponto de ficar tantos meses trancafiado nesta prisão. Agora quem passou dos limites foram eles. Não vou mais aceitar tamanho absurdo. Vou sair daqui imediatamente, nem que eu tenha que arrebentar esta porta.”
Neste momento, o monge se aproxima da porta e, numa atitude enraivecida, tenta forçar a tranca da porta para arrombá-la logo em seguida. Ao fazer isso, a porta se abre sem qualquer esforço de sua parte. Espantado, o monge nota que a porta estava aberta durante todo o tempo em que permanecera ali!

A certeza e a dúvida, Siddhārtha Gautama

Buda estava reunido com seus discípulos certa manhã, quando um homem se aproximou:
– Existe Deus? – perguntou.
– Existe – respondeu Buda.
Depois do almoço, aproximou-se outro homem.
– Existe Deus? – quis saber.
– Não, não existe – disse Buda.
No final da tarde, um terceiro homem fez a mesma pergunta:
– Existe Deus?
– Você terá que decidir – respondeu Buda.
Assim que o homem foi embora, um discípulo comentou, revoltado:
– Mestre, que absurdo! Como o Senhor dá respostas diferentes para a mesma pergunta?
– Porque são pessoas diferentes, e cada uma chegará a Deus por seu próprio caminho. O primeiro acreditará em minha palavra. O segundo fará tudo para provar que eu estou errado. E o terceiro só acredita naquilo que é capaz de escolher por si mesmo.

31 de mar. de 2016

Rumi

Você nasceu com asas. Por que você ainda assim prefere se rastejar pela vida?

Jalal ad-Din Muhammad Rumi




Muitas das falhas que você vê nos outros, são seus próprios defeitos refletidos neles.

Olá, como você está? Charles Bukowski

esse medo de ser o que eles são:
mortos. 
pelo menos eles não estão na rua, eles
têm o cuidado de ficar dentro de casa, aqueles
malucos que se sentam sozinhos na frente de suas tvs,
suas vidas cheias de enlatados, riso mutilado.
seu bairro ideal
de carros estacionados
de pequenos gramados
de pequenas casas
as pequenas portas que abrem e fecham
quando seus parentes os visitam
durante as férias
as portas se fechando
atrás do moribundo que morre tão devagar
atrás do morto que ainda está vivo
em seu tranquilo bairro de classe média
de ruas sinuosas
de agonia
de confusão
de horror
de medo
de ignorância.
um cão parado atrás de uma cerca.
um homem silencioso na janela.

30 de mar. de 2016

Vida, Friedrich Nietzsche

Há que não atentar muito em felicidades, graças, bem-aventuranças distantes e desconhecidas, mas sim em viver da maneira com que gostaríamos de reviver, dentro dos mesmos moldes, até à eternidade. É esta a tarefa que temos pela frente: constante e continuadamente.

Tempo, Miguel Torga



Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.
Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!
Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Rainer Maria Rilke

''Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas.'' 

Charles Bukowski

 este é meu piano.
o telefone toca e as pessoas perguntam,
o que você está fazendo? que tal
encher a cara com a gente?
e eu digo,
estou ao piano.
o quê?
desligo.
as pessoas precisam de mim. eu as
completo. se não podem me ver
por um tempo ficam desesperadas, ficam
doentes.
mas se as vejo muito seguido
eu fico doente. é difícil alimentar
sem ser alimentado.
meu piano me diz coisas em
troca.
às vezes as coisas estão
confusas e nada boas.
outras vezes
consigo ser tão bom e sortudo como
Chopin.